A Baixa e Álvaro de Campos
- Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
- Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
- Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
- E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
- (Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
- Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
- E romantismo, sim, mas devagar...).
- Sinto uma simpatia por essa gente toda,
- Sobretudo quando não merece simpatia.
- Sim, eu sou também vadio e pedinte,
- E sou-o também por minha culpa.
- Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
- E' estar ao lado da escala social,
- E' não ser adaptável às normas da vida,
- 'As normas reais ou sentimentais da vida -
- Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
- Não ser pobre a valer, operário explorado,
- Não ser doente de uma doença incurável,
- Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
- Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
- Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
- E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
- Não: tudo menos ter razão!
- Tudo menos importar-se com a humanidade!
- Tudo menos ceder ao humanitarismo!
- De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?
- Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
- Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
- E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
- E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
- Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
- Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
- E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
- Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
- Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
- E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
- Coitado do Álvaro de Campos!
- Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
- Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
- Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
- Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
- Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão
- Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
- Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
- E, sim, coitado dele!
- Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
- Que são pedintes e pedem,
- Porque a alma humana é um abismo.
- Eu é que sei. Coitado dele!
- Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
- Mas até nem parvo sou!
- Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
- Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
- Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
- Já disse: sou lúcido.
- Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
- Merda! Sou lúcido.
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